21 de jan. de 2025

um ama mais e o outro ama melhor

Amor em Assimetria.

Amar desigualmente é a mais silenciosa das tragédias. Aquele que ama mais carrega o peso de uma devoção que transborda, sufocando no próprio excesso, enquanto o outro, que ama melhor, administra suas afeições com a parcimônia de um jardineiro que poda o excesso para preservar o essencial.

Na dissolução do vínculo, quem ama mais agoniza. A ausência não é apenas a falta de um corpo, mas a amputação de um futuro que se imaginava compartilhado. Cada lembrança torna-se uma lâmina, e o passado, um espelho que reflete um rosto agora irreconhecível.

Sozinho, permaneço numa sala impregnada pelo espectro do teu perfume, por palavras nunca ditas e pela promessa do teu retorno – que sei, nunca virá. O amor, que antes aquecia como um lar, agora é um quarto gelado, onde as paredes sussurram tua ausência.

Aceito o destino como quem aceita um exílio. Não há revolta, apenas resignação; não há esperança, apenas o cultivo discreto de uma melancolia que me faz companhia. Descubro, por fim, que amar mais é um ato de coragem; e amar melhor, um privilégio da alma que nunca me pertenceu.


(Cássio D. Versus)

fogo e sombra


Um dia Gaimon encontrou o fogo. Primeiro, temeu-o, pois a luz feriu seus olhos acostumados à penumbra, e o calor queimou seus dedos curiosos. Mas, ao persistir, descobriu que o fogo não era apenas destruição; era também criação. Nele, aprendeu a ver além do medo, a moldar formas na escuridão e a sentir o calor não como inimigo, mas como força. Ali, percebeu: o fogo era sua vontade, a centelha de vida que, mesmo pequena, poderia transformar tudo.

Mas o fogo só fazia sentido porque havia sombras. Essas sombras, inicialmente desprezadas como meros reflexos do que não se podia tocar, revelaram-se companheiras sussurrantes. Na escuridão projetada pelo fogo, a pequena criatura viu contornos, histórias e memórias. As sombras não negavam o fogo, mas completavam sua existência. Eram os limites que faziam a luz brilhar mais intensamente.

Assim, entre o fogo que guiava e a sombra que refletia, Gaimon Versus encontrou seu propósito: não fugir de um ou outro, mas caminhar na estreita linha onde ambos se encontravam, onde luz e escuridão dançam em harmonia. E, pela primeira vez, a pequena criatura talvez saiba o quão é imensa e microscópica simultâneamente.


(Cássio D. Versus, Cartas Para o Passado, 2015)

Mudanças


Levo a fé como vela hasteada na densa bruma do mar incerto enquanto sou sombra a vaguear em sentimentalidade abandonada no eco etéreo, sigo onde o sopro murmura segredos, levando apenas meu amor por Cristo como bagagem, um relicário de luz feito para evitar trevas próximas aos tormentos de meus pensamentos. Como detê-los, aliás? Adoro quando o céu veste cinzas e o horizonte desaparece, meus passos, vagos, tecem estradas em campos sufocantes da incerteza trajando cânticos de partida. Vida é a vela que nela existimos, nossos espíritos são as chamas, e a fumaça, nosso encontro com os Divinos. Empurram-me ao limiar do desconhecido. Apenas a noite, para ver o meu encontro com o invisível.


(Cássio D. Versus)
 

18 de jan. de 2025

para o passado: apocalipse


Graças a você me embriaguei levitando pelo Louvre, dei beijo de esquimó no sorriso destemperado de Mona Lisa, molhei sem querer os pés naquele fim de mundo chamado Veneza. Vi Madre Teresa perdendo a paciência com os pobres, uma velha insuportável - não conosco (acho que foi o meu pingente de pentagrama), testemunhei Dalai Lama jogando pedras num lago, entediado suplicando por reencarnação, e Buda (o próprio ou um deles) conversando sobre vinho com Confúcio, atordoado com  Tetris. Graças a você subi as alturas da Torre de Babel em 98, e mergulhei no fundo de Atlântida, segurando a tua mão de Helga Sinclair só para gargalhar co'o velho Zeus e suas piadas viscerais ao lado de Odin, tocando gaita. Graças a você testemunhei o Gênesis ser transformado em um show de talentos celeste, com Adão desafinando as tripas e Eva roubando a cena com uma performance de rockstar enquanto Lilith me ensinava sobre como o amor é pior que qualquer outro veneno. Embarquei no barco de Caronte, que assobiava Led Zeppelin enquanto cobrava a passagem em bitcoins. Graças a você assisti Perséfone e Hades debaterem o uso sustentável do submundo, enquanto Ícaro lucrava vendendo chapéus na entrada. Vi os pulsos de Cronos, que medem o caos com a precisão de um relojoeiro divino. Toquei os restos da lira de Orfeu, afinada pelo desespero das sombras. Conheci Medusa, não nos campos de batalha, mas no mercado negro de enfeitiçados espelhos quebrados. Ouvi o eco distante das danças de Shiva, que moldavam universos ao som de tambores atrevidamente inexistentes. Encontrei Prometeu, agora dono de uma rede de churrascarias, com especialidade em “carne divina”. Acompanhei Atena, que perdeu uma aposta para Ares e virou comentarista esportiva do submundo. (Re)Descobri Pandora leiloando caixas de papelão em uma liquidação de feira popular, com frete grátis para outros mundos. Graças a você, o Olimpo virou um festival, com Apolo no palco principal e Dionísio distribuindo brinde batizado no camarote. E eu, perdido no êxtase desse delírio, soube que tudo isso só existiu porque você, como ninguém, me apresentou ao reino sublime dos meus próprios sentimentos (como se valessem alguma coisa). Graças a você, ejaculei o Big Bang. Vi Darwin arrancando rascunhos da "Origem das Espécies" porque achava que faltava sal. Experimentei o gosto amargo da imortalidade em um bar clandestino do tempo, enquanto Nietzsche e Platão ao lado jogavam truco e discutiam sobre quem era mais insuportável. Graças a você descobri que o esconder-se é revelar-se para si. Ouvi Beethoven tocar uma valsa de elevador para irritar Mozart. Caminhei lado a lado com Van Gogh, que pintava selfies antes do pôr do sol porque "ficava mais poético". Graças a você soube que a Torre de Pisa inclina porque é preguiçosa, que os faraós escondiam pornografia hebraica nas pirâmides, e que o ouro de Eldorado só serve pra embrulhar chocolate belga. Vi Shakespeare finalmente admitir que "Romeu e Julieta" era apenas um roteiro piloto de websérie, e que Páris foi cortado por falta de audiência. Descobri que a Grande Depressão foi causada pela falta de charme. Fui convidado para o chá da Rainha Victoria, que reclamava que o século XIX era um "porre de monotonia". Graças a você aprendi que Atlas largou o mundo no chão porque queria se inscrever numa academia devido vaidade. Caminhei pela Muralha da China só para encontrar Genghis Khan assinando um contrato de exclusividade co'uma agência de turismo. Graças a você vi Tesla largar a eletricidade pra virar aspirante a comédia improvisada da década de 20, pouco depois da minha avó nascer, onde ensinava a fazer torradeiras com raios de plasma. Einstein disfarçando chupões e mordidas das jovens estudantes. Graças a você entendi que o universo inteiro é uma orquestra sinfônica sentindo-se constantemente desafiada por um invisível que golpeia, acalenta, acaricía, mata, renasce, desliza, evolui, chapa o coco, regida por um maestro bêbado — mas, por algum motivo, ainda não consigo parar de dançar. Graças a você vi Zeus sendo barrado em um casamento em Creta porque Hera o pegou flertando com as ninfas do buffet. Presenciei Atena discutindo no tribunal dos deuses porque Hermes plagiou sua ideia de "Google Olímpico". Graças a você descobri que Apolo trocou sua lira por uma guitarra elétrica, mas Orfeu o processou por concorrência desleal, e Ártemis ameaçou abrir um parque de caças veganas para evitar piadas com touros dourados. Graças a você assisti Thor reclamando que o Mjölnir estava com delay nos raios e Loki vendendo NFTs de suas transformações. Presenciei Poah tentando explicar o conceito de runas para adolescentes vikings, que só queriam saber de MSN rúnico. Graças a você vi Anúbis tirar férias porque reclamaram que sua balança não era “inclusiva” e Osíris aceitar cartões telefônicos em oferendas funerárias. Sob sua influência, Bastet foi capturada num viral de memes enquanto Ammit fazia cosplay de justiceiro no tribunal egípcio. Graças a você quero pintar o seu nome em meu braço com luzes e neon o suficiente para competir com Vegas. Graças, minha gracinha! Graças a você, entendi que o Olimpo, o Valhala e o Duat são só camarotes diferentes de uma mesma festa intergalática, e nós somos as formiguinhas que elas adoram ver em movimento sem ritmo lá embaixo. Graças a você ficou mais fácil me encontrar. Somos um pouco melhores que formigas sem ritmo.

Vi você, jovem, escrevendo o meu nome em seu braço com canetinha.
Sempre faltando um S.
Tornou a escola menos insuportável, agradeço a paisagem e... pardon.
Aliás, Sabrina, morreremos nos devendo.


(Cássio D. Versus, Cartas Para o Passado, 2005)

16 de jan. de 2025

Pseudônimo Masculino: Ellis Bell


“Eu chorava tanto por ele como por ela; 
às vezes temos compaixão por criaturas 
que não têm esse sentimento nem por elas próprias, 
nem por outras pessoas.” 

—  Emily Brontë / O Morro dos Ventos Uivantes

(1797 - 1851)


"O começo é sempre hoje." 

(Mary Shelley)

12 de jan. de 2025

Matrimônio (Resumo do Teste)


Ah, o casamento. A venerada instituição que, ao mesmo tempo, é a cova rasa do amor espontâneo e a pedra angular das convenções sociais. Não há erro maior do que confundir a assinatura de um contrato jurídico com o ímpeto visceral do amor verdadeiro. Enquanto o amor é efêmero, delirante e gloriosamente anárquico, o casamento é burocrático, estático e minuciosamente regulado por códigos civis e tabelas de Excel conjugal.

O casamento é uma máquina de moer almas que transforma amantes ardentes em carcereiros emocionais, presos em um ciclo interminável de cobranças sobre o uso do banheiro e a divisão do detergente. Manuel Bandeira talvez chamasse isso de "um retrato emoldurado do desencanto".

Se o amor é o vôo de Ícaro, o casamento é o teto baixo da sala onde ele inevitavelmente se esborracha. A paixão — esse fogo fátuo que devora o ar da existência — não sobrevive ao enclausuramento das rotinas matrimoniais. É o rito que converte o "eu te amo" em um "quem vai buscar o pão hoje?" com entonação passivo-agressiva.

E as falhas? Fatais.

  • Idealização do Outro: No altar, não se casa com a pessoa real, mas com a projeção delirante de um ideal que o cotidiano tem a missão de assassinar lentamente.
  • Monotonia Prosaica: Uma vez consumado, o casamento tende a transformar o desejo em hábito e o entusiasmo em obrigação. O amor não é vencido pelo ódio, mas pela exaustiva familiaridade.
  • Ilusão da Exclusividade: Nada mais ingênuo do que acreditar que a exclusividade sexual ou emocional seja intrínseca à convivência forçada de décadas. A monogamia perpétua é uma das maiores mentiras do romantismo.

O casamento é "uma eterna segunda-feira vestida de domingo". Acabo concluindo que, em muitos casos, o casamento apenas oficializa uma relação que já estava condenada — transformando amantes eventuais em sócios de uma empresa que inevitavelmente falirá.

O amor, para florescer e fluir, exige caos, liberdade e mistério. O casamento, com suas leis e listas de tarefas, é um antídoto fatal para isso, com filhos, mais vítimas. Amar é uma revolução espontânea; o casamento, um tratado de paz assinado sob coação.


(Cássio D. Versus / 2006 Matéria PTBR)

9 de jan. de 2025

Oração Para O Altíssimo


Oh, Altíssimo, que sondas os corações e pesas as intenções nas balanças da eternidade, suplico-te com toda a humildade que desvincules minha alma das sombras do passado, de seus tentáculos insidiosos que tentam profanar o presente e minar o futuro. Que nenhum eco de erros outrora cometidos, nenhuma cicatriz de decisões precipitadas, tenha poder de se infiltrar em minha existência, ou na vida daqueles que tanto amo e prezo.

Peço-Te ainda, Pai Celestial, que derrames a luz do perdão sobre aqueles a quem, consciente ou inconscientemente, feri com minhas ações ou omissões. Se lhes for difícil conceder-me esta absolvição, que eu jamais me curve ao orgulho ou à necessidade de reciprocidade, mas os ame com o mais puro amor, desprovido de expectativas e livre de grilhões emocionais.

Ensina-me, Senhor, que o amor verdadeiro é aquele que se mantém intocado, mesmo quando não é correspondido; e que, na profundidade de nossas emoções, até mesmo o ódio, se nutrido por ignorância e não pela verdade, pode ser porta aberta para enganosos deuses das trevas. Guarda-me de tais armadilhas espirituais, pois desejo caminhar sob Tua luz inefável, guiado apenas pela Tua infinita sabedoria.

Purifica-me, Criador Supremo, para que minha oração seja qual incenso santo, subindo ao Teu altar sem mácula ou resistência. Que as conexões forjadas pelo Teu amor sejam renovadas, e as correntes do rancor ou da culpa dissolvam-se na vastidão do Teu perdão.

Amém.


(Cássio D. Versus)