5 de set. de 2011

Os Materiais


Eu quis a palavra reta
feito faca.

Eu fiz do verso o corte brando
do metal.

O lento sal dos anos
não lhe roube o fio.

O inimigo não possa
empunhá-lo durante a luta.

Se o carrasco, algum dia,
levar aos lábios meu poema,

o vidro claro do verso
lhe corte a boca.

E a palavra não se renda
à tortura.

E quando eu disser: pedra,
não se entenda pão.

Quando eu disser: noite,
se encontre nela todo poder de treva.

Quando eu disser: eis o inimigo,
mate-o antes do amanhecer.


(Do livro "Poemas do Povo da Noite", de Pedro Tierra)

Pássaro


Aquilo que ontem cantava
já não canta.
Morreu de uma flor na boca:
não do espinho na garganta.


Ele amava a água sem sede,
e, em verdade,
tendo asas, fitava o tempo,
livre de necessidade.


Não foi desejo ou imprudência:
não foi nada.
E o dia toca em silêncio
a desventura causada.

Se acaso isso é desventura:
ir-se a vida
sobre uma rosa tão bela,
por uma tênue ferida.



(Cecília Meireles)

Lua Adversa


Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...


(Cecília Meireles)

Canção do Amor-Perfeito


Eu vi o raio de sol
beijar o outono.
Eu vi na mão dos adeuses
o anel de ouro.
Não quero dizer o dia.
Não posso dizer o dono.

Eu vi bandeiras abertas
sobre o mar largo
e ouvi cantar as sereias.
Longe, num barco,
deixei meus olhos alegres,
trouxe meu sorriso amargo.

Bem no regaço da lua,
já não padeço.
Ai, seja como quiseres,
Amor-Perfeito,
gostaria que ficasses,
mas, se fores, não te esqueço.


(Cecília Meireles)

The Big Swallow



De James Williamson. 1901. Com Sam Dalton.

2 de set. de 2011

Epopéia


Céu.
Que céu?
O céu é quimérico.
Nuvens não.
Ah, com certeza as nuvens não!
Elas passeiam, dançam, choram
ora de contentamento
ora de desalento
ora de fereza
certas vezes
são tão generosas
que emascaram o sol
tornando assim
todo o horizonte conspícuo...

Nuvens são tão verdade.


(Cássio D. Versus)