25 de fev. de 2011

Duas Almas


Ó tu, que vens de longe, ó tu, que vens cansada,
entra, e, sob este teto encontrarás carinho:
eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho,
vives sozinha sempre, e nunca foste amada...

A neve anda a branquear, lividamente, a estrada,
e a minha alcova tem a tepidez de um ninho.
Entra, ao menos até que as curvas do caminho
se banhem no esplendor nascente da alvorada.

E amanhã, quando a luz do sol dourar, radiosa,
essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua,
podes partir de novo, ó nômade formosa!

Já não serei tão só, nem irás tão sozinha.
Há de ficar comigo uma saudade tua...
Hás de levar contigo uma saudade minha...


(Alceu Wamosy)

Amar


Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: aqui... além...
mais este e aquele, o outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disse que se pode amar alguém
durante a vida inteira é porque mente.

Há uma primavera em cada vida:
é preciso cantá-la assim florida,
pois se Deus nos deu voz foi p'ra cantar.

E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
que seja a minha noite uma alvorada,
que me saiba perder... p'ra me encontrar...


(Florbela Espanca)

24 de fev. de 2011

Soneto


Vieste tarde, meu amor. Começa
em mim caindo a neve devagar...
Morre o sol; o outono vem depressa,
e o inverno, finalmente, há-de chegar.

E se hoje andamos juntos, na promessa
de caminharmos toda a vida a par,
daqui a pouco o teu amor tem pressa
e o meu, daqui a pouco, há-de cansar.

Dentro em breve, por trás das velhas portas,
dando um ao outro só palavras mortas
que rolam mudas sobre nossas vidas,

ouviremos, nas noites desoladas,
tu, a canção das vozes desejadas,
eu, o chorar das vozes esquecidas.


(Nunes Claro)

Nihil


Sem aos outros mentir, vivi meus dias
desditosos por dias bons tomando,
das pessoas alegres me afastando
e rindo às outras mais do que eu sombrias.

Enganava-me assim, não me enganando;
fiz dos passados males alegrias
do meu presente e das melancolias
sempre gozos futuros fui tirando.

Sem ser amado, fui feliz amante;
imaginei-me bom, culpado sendo;
e se chorava, ria ao mesmo instante.

E tanto tempo fui assim vivendo,
de enganar-me tornei-me tão constante,
que hoje nem creio no que estou dizendo.


(Guimaraens Passos)

O Rebelde


É um lobo do mar: numa espelunca
mora, à beira do oceano, em rocha alpestre.
Ira-se a onda e, qual tigre silvestre,
de mortos vegetais a praia junca,

e ele, olhando como um velho mestre
o revoltoso que não dorme nunca,
recurva o dedo como garra adunca
sobre o cachimbo, único amor terrestre.

E então assoma-lhe um sorriso amargo...
É um rebelde também, cérebro largo,
que odeia os reis e os padres excomunga.

À noite, dorme sem rezar: que importa?
Enorme cão fiel, guarda-lhe a porta
o velho mar soturno que resmunga.


(Lúcio de Mendonça)

21 de fev. de 2011

Agulha no Palheiro


Para que destruir-te com uma voz, então,
para que encerrar-te em um sarcófago sonoro?
Fiquemos assim,
cobiçando um ao outro, e sem falar.


(Jaime Labastida, "Animal de Silêncios")

18 de fev. de 2011

Divina Comédia


Erguendo os braços para o céu distante
e apostrofando os deuses invisíveis,
os homens clamam: - Deuses impassíveis,
a quem serve o destino triunfante,

por que é que nos criastes?! Incessante
corre o tempo e só gera, inextinguíveis,
dor, pecado, ilusões, lutas horríveis,
num turbilhão cruel e delirante...

Pois não era melhor na paz clemente
do nada e do que ainda não existe,
ter ficado a dormir eternamente?

Por que é que para a dor nos evocastes?
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
dizem: - Homens, por que é que nos criastes?!


(Antero de Quental)

16 de fev. de 2011

Ignorabimus


Quanta ilusão!... O céu mostra-se esquivo
e surdo ao brado do universo inteiro...
De dúvidas cruéis prisioneiro,
tomba por terra o pensamento altivo.

Dizem que o Cristo, o filho de Deus vivo,
a quem chamam também Deus verdadeiro,
veio o mundo remir do cativeiro,
e eu vejo o mundo ainda tão cativo.

Se os reis são sempre reis, se o povo ignavo
não deixou de provar o duro freio
da tirania, e da miséria o travo,

se é sempre o mesmo engodo e falso enleio,
se o homem chora e continua escravo,
de que foi que Jesus salvar-nos veio?...


(Tobias Barreto)

Eu Vi a Linda Jônia...


Eu vi a linda Jônia, e namorado
fiz logo eterno voto de querê-la;
mas vi depois a Nize, e é tão bela
que merece igualmente o meu cuidado.

A qual escolherei, se neste estado
eu não sei distinguir esta daquela?
Se Nize agora vir, morro por ela,
se Jônia vir aqui, vivo abrasado.

Mas ah! que esta me despreza, amante,
pois sabe que estou preso em outros braços,
e aquela não me quer, por inconstante.

Vem, Cupido, soltar-me desses laços:
ou faze desses dois um só semblante,
ou divide o meu peito em dois pedaços!


(Alvarenga Peixoto)

Armada de Aspereza Minha Estrela


Armada de aspereza minha estrela
a nova dor me leva e me encaminha;
mas se uma glória vi perder-se asinha,
foi por quem a perdi, glória perdê-la.

Sucede a nova dor, nova querela
à liberdade que gozado tinha:
não sei remédio dar à mágoa minha;
e quem lho pode dar não sabe dela.

Que alívio logo em meu tormento espero,
se a que mo censura na alma, não o sente?
Senão se o vê nos olhos com o que vejo.

Porém, ah, doce amor, eu antes quero
passar convosco a vida descontente,
que contente viver sem meu desejo.


(Fernão Álvares do Oriente)