30 de mai. de 2018

That's it



Fenda


Amor coagulado
em nossos peitos
sem a capacidade
de manifestar
o talento inacabado
das proezas
que cometemos
antes de ganharmos
consciência...

É o delírio
que nos sustenta.

Pesadelo
que o sonho ajunta.

Penitência
ou coerência?

Obter as respostas
sem termos feito as perguntas.


(Cássio D. Versus)

Candeeiro



(Arte: Domenico Fetti)


O mundo necessita do caos
e sua dissimulada brandura
para menear almas paradas
sob leito de coesa ruptura...

(Cássio D. Versus)

Solo


Da vida que vivi
levarei todas as cores
um pouco das dores
e quase nada de amores

pois das cores
e dores
vieram sacros mananciais

cordilheiras vitais

dos findados amores
terra a mendigar por
entre artrópodes azulejos

vãs flores de quintais


(Cássio D. Versus)

26 de mai. de 2018

Horário do Fim


morre-se nada
quando chega a vez

é só um solavanco
na estrada por onde já não vamos

morre-se tudo
quando não é o justo momento

e não é nunca
esse momento


(Mia Couto)

Destino


à ternura pouca
me vou acostumando
enquanto me adio
servente de danos e enganos

vou perdendo morada
na súbita lentidão
de um destino
que me vai sendo escasso

conheço a minha morte
seu lugar esquivo
seu acontecer disperso

agora
que mais
me poderei vencer?


(Mia Couto)

Identidade


Consegui voar e atacar.

Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem insecto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço


(Mia Couto)

25 de mai. de 2018

Planeta (Set/2015)


"A escrita é a minha casa, meu abrigo.
Não contra as feras que rondam,
mas contra os meus monstros interiores."


(Mia Couto)

19 de mai. de 2018

VII


Bem mais perto do fim da minha vida,
não ouso perscrutar o quanto fui,
o quanto de anjo torto, gauche ou não -

pois tudo de bom, de mau, se dilui
em Cronos, no tempo, no turbilhão
da ordem no Caos, que sem pressa flui

pré-socrático, imune, sem perdão
em minha heráclita veia, e lento,
festa de sangue, humor e pensamento.


("Nostoi", Armando F.)

VI


Torrentes cruzei pelas vias plácidas
que freqüentei, mais a noite que o dia
a mim se aliou nas artérias ácidas

pulsantes de um mundo que não sentia
as margens fúlgidas e mesmo cegas,
contraditórias, do mundo que eu via.

Sementes deixei - ó mundo, carregas
(mas não o meu, o deles) este fardo
a mais, vingança sutil de um degas

que insiste ainda, com certo retardo,
em se fazer ouvir, criar platéia,
com nome visigodo ou de boiardo

fingindo o renascer de alguma idéia
já que não tem um nome, um latifúndio,
e bota abaixo o céu da Cananéia.

Futuro, nem passado. Sou gerúndio
em mim regendo incréu minha partida.


("Nostoi", Armando F.)

Canto XIII


31. Estendi o braço e de um galho arranquei um ramo. E o tronco clamou: "Por que me partes?" Cobrindo-se logo de negro sangue, prosseguiu: "Por que me feres? Não possuis um mínimo de piedade? Em tempos idos fomos homens, hoje somos lenho, mas ainda quando fôssemos almas de serpente, menos cruel deverias ter a mão."

91. Da triste árvore partiu sopro rijo quem em voz humana isto fez ouvir: "Darei resposta breve e precisa. Quando homem violento, dominado pelo furor, voluntariamente apaga a sua vida, é atirado por Minos ao sétimo círculo. Cai, ao acaso, no meio da floresta, qual semente germina e se faz árvore, cuja fronde serve de pasto às Hárpias, as quais, provocando dor, a esta abrem a janela que são os gritos. No dia do Juízo Final, como os demais iremos procurar os nossos corpos sem que deles possamos jamais revestir-nos, pois não é justo recuperar o que em vida se rejeitou. Serão arrastados para aqui e permanecerão pendentes dos galhos da árvore na qual a alma está reclusa".


("A Divina Comédia", Dante)

Coitado! Que em um tempo choro e rio


Coitado! Que em um tempo choro e rio;
Espero e temo, quero e aborreço;
Juntamente me alegro e entristeço;
Confio de uma causa e desconfio;

Voo sem asas; estou cego e guio;
Alcanço menos no que mais mereço;
Então falo melhor, quando emudeço;
Sem ter contradição sempre porfio;

Possível se me faz todo o impossível;
Intento, com mudar-me, estar-me quedo;
Usar de liberdade e ser cativo;

Queria visto ser, ser invisível;
Ver-me desenredado, amando o enredo;
Tais os extremos são com que hoje vivo!


(Luiz Vaz de Camões)