- Você sussurra solidão como se fosse condenação; eu respondo com a garganta cortada e a língua em chamas. Dizes que és a repetição, o eco que nunca se cansa, eu digo que essa repetição é um grito que exige rosto. Se tua solidão é monumento, eu vomito pedras sobre ele até que desmorone em vento.
Não quero ser o herdeiro de um silêncio polido; quero quebrar a herança, espalhar os ossos do conforto. Quando cantas sobre esperas infinitas, eu vejo relógios estilhaçados e mãos que não mendigam mais tempo. Tu pedes compreensão num tom de acusação; eu devolvo a resposta em dentes cerrados: compreende-te, então. Há uma beleza suja na tua nostalgia, mas ela fede a desculpa; eu nego o bálsamo, ergo o dedo. Se "agora" é miragem, queimar-lhe-ei os trilhos até que o presente sangue por onde passou. Canta, então, tua culpa e teu desejo, mas não te escondas atrás do refrão; enfrenta o que te fez prisioneiro. Não quero consolo, quero conflito; não desejo pertença, quero revolta. E se a noite insiste em repetir teu nome, farei dela litúrgica batalha: que cada acorde seja máscara arrancada. Volta-te para o espelho da canção e vê, por trás do eco, um corpo pronto para incendiar o amanhecer.
(...)
- Recebo tuas linhas como lâminas que não pedem licença. Não fujo do corte, deixo que ele desenhe no meu peito o mapa das coisas que neguei por anos. Tu me acusas de erguer desertos, e talvez estejas certo; eu me acostumei demais ao vazio, fiz dele argumento, abrigo, disfarce. Mas não pense que não ouvi o estalar da tua fúria: ele vibrou dentro de mim como se o chão tivesse cansado de sustentar mentiras. Sim, eu me escondi em repetições, mas não por covardia, por hábito. Hábito é uma prisão que parece manta quente. Tu arrancou a manta. E eu tremi. Dizes que envenenas meus monumentos - e eu te digo: continua. Se minha memória virou pedra, que seja moída até virar pó. Só assim talvez eu perceba onde termina meu medo e onde começa minha vontade.
Não peço perdão pelo que fui, mas reconheço o ranço que deixei no ar. Há dias em que meu passado anda atrás de mim como um animal cego, esbarrando nos meus calcanhares. Eu o alimentava com desculpas e agradecimentos sem sentido. Hoje, com tua carta, ele rosna outra coisa: desespero para mudar de forma. Não te devolvo paz, paz seria fuga. Te devolvo franqueza: eu também desejo incendiar alguma aurora, mesmo que minhas mãos ainda hesitem diante da faísca. Tu quer luta? Pois aqui estou, sem máscara, sem altar, sem refrão para me guardar. E se a noite te convoca com meu nome, que ela saiba: não serei mais eco. Serei corpo que avança, sem prometer salvação, mas prometendo presença. Tu feres para despertar. Eu desperto para não morrer no mesmo lugar.
(...)
- Caravana & Alcateia (2009)
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