8 de mar. de 2025

Carnaval para um corpo sem vida

O estrondo rasgou o ar como um trovão forjado pelo acaso. O impacto primeiro foi entre dois carros, um choque brutal que empurrou a violência adiante, arremessando uma moto para longe. O piloto foi lançado como uma marionete sem fios, um homem reduzido a trajetória e gravidade. Por um instante, ele flutuou, uma figura contra o céu cinza, até que seu corpo encontrou o metal impassível de um ônibus. A colisão foi o segundo ato da tragédia. O terceiro veio quando ele caiu, um peso morto sobre o asfalto, ainda vivo apenas o suficiente para assistir ao próprio fim.

Fiquei ali, congelado, não por medo, mas por um tipo de espanto que só se sente diante daquilo que transcende o ordinário. Ele respirou uma última vez. Eu vi. O último sopro, o adeus invisível que se perde no vento, sem aplauso, sem cerimônia.

E então, tudo fez sentido. O absurdo da existência revelou-se como um espelho brutal. Passamos a vida temendo monstros e mitologias, mas esquecemos que o maior horror é a banalidade da morte, sua simplicidade cruel. Um momento estamos, no seguinte, não mais. Como um pensamento que se forma e se dissolve antes de ser dito, como uma vela que se apaga sem resistência ao próprio destino.

A vida, essa entidade tão sagrada, não passa de um cálculo frágil entre o tempo e o acaso. E nós, que nos acreditamos importantes, que nutrimos sonhos, medos e amores, não somos mais do que acidentes esperando sua hora. A única certeza é que o chão nos aguarda, indiferente.

O trânsito seguiu. As buzinas voltaram. O mundo não parou. Nem mesmo por um segundo. E ali, naquela continuidade implacável, compreendi: a vida não se importa com nossa existência, e talvez seja exatamente isso que a torne tão insuportavelmente bela.

...

Passageiro Sombrio


Eis que não são os leviatãs do mar, nem os gafanhotos do Apocalipse que mais atormentam o homem, mas sim as feras que habitam sua própria alma. Pois está escrito: "O coração é mais enganoso que qualquer outra coisa e sua doença é incurável; quem pode compreendê-lo?" (Jeremias 17:9).

Nos desertos do pensamento erguem-se sombras sem nome, espectros que sussurram na noite, que tentam e desviam, que semeiam o medo e colhem a perdição. Não são feitos de carne ou de ossos, não portam garras nem presas, mas destroem com dúvidas e consomem com angústia.

Caim não precisou de um demônio para erguer sua mão contra Abel — sua inveja foi suficiente. Judas não teve um espectro a lhe segredar a traição — a prata pesou mais que sua fé. Assim são os monstros internos: nascem do desejo, crescem no silêncio e devoram na hora mais escura.

Aqueles que buscam dragões lá fora esquecem que os verdadeiros habitam o espelho. Pois antes de buscar expulsar demônios do mundo, é preciso exorcizar os que se aninham na mente, pois "o espírito está pronto, mas a carne é fraca" (Mateus 26:41).

E assim caminha o homem, carregando sua própria batalha, duelando com os fantasmas que ninguém vê, clamando por redenção em um campo de guerra invisível. Mas aquele que reconhece suas trevas e busca a luz, este sim poderá dizer: "Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum, porque Tu estás comigo" (Salmos 23:4).
...

não tão bom assim


Sou essencialmente falho,
feito de entranhas que simulam calor,
mas que não queimam, apenas ardem
num lume falso, sem cor.

Sou um eco de frases decoradas,
um palco sem cena, um papel sem traço.
O tempo me engole sem mastigar,
e sigo vivendo sem um pedaço.

Não há ternura no que respiro,
apenas metas traçadas a frio,
um cálculo exato de passos vazios,
um esboço sem traço macio.

E não sou digno do toque da graça,
não, não sou digno do toque da graça.
...

7 de mar. de 2025

reflexão.


Há momentos em que a maldade e o arrependimento coexistem, dançando numa valsa silenciosa sobre o fio da culpa. Nesse palco, o eco de nossas escolhas reverbera nos abismos que insistimos em ignorar. O mar aceita tudo; o céu observa em resignação. Mas e nós? Permanecemos prisioneiros do que fomos ou nos tornamos ferreiros do que seremos? O peso da escuridão não é o seu fardo, mas a ausência de luz que decidimos abraçar.

...