- Aquiles disse em Tróia: ‘Os deuses nos invejam porque somos mortais’. Não por compaixão, mas porque cada instante que vivemos carrega um peso que eles jamais sentirão. A banalidade da morte é, paradoxalmente, mais fatal do que ela própria—porque não está no ato final, mas na constância com que sussurra ao longo da vida. Eu nunca testemunhei o último sopro. Sempre que ele se anuncia, algo me arranca dali, como se o próprio destino me recusasse o direito de assistir ao desfecho vital alheio. Mas com você parece ser o oposto. Você está lá… imóvel, como uma sombra paciente, um arauto silencioso do fim, apenas aguardando que o derradeiro fio se rompa. E eu, incapaz de suportar o assombro do instante irreversível, me retiro antes que o silêncio final devore meu pesar. Talvez sejamos duas faces da mesma moeda, a morte sempre rondando entre nós, mas enquanto eu viro o rosto, você encara o abismo sem hesitar. Há aqueles que são tocados pelo luto de relance, e há os que dançam com ele, sentindo cada nuance do seu toque gélido. Você, de alguma forma, permanece no limiar, no exato instante em que a existência se dissipa, como se fosse necessário estar ali para que o fim se completasse. E eu me pergunto: é coragem ou maldição? É destino ou uma sina silenciosamente escolhida? Aquiles buscava a glória eterna, mas ao preço de uma vida breve. Talvez, sem perceber, você tenha escolhido um tipo diferente de eternidade—não nos cânticos de guerra, mas nas lembranças de quem parte sob seu olhar atento, mórbida famigeração. (...) Eu me afasto, sim. Porque há algo de insuportável no último suspiro, como se ele não fosse apenas o término sombrio de quem parte, mas um lembrete cruel de que, um dia, também seremos os que ficam para trás… ou os que partem.
- Sim… provavelmente os deuses nos invejam porque somos efêmeros. Porque sentimos o tempo escorrer entre os dedos como areia condenada ao vento e temos consciência disso. A morte, em sua "superficialidade", é mais devastadora do que seu próprio golpe final. Não é o instante do último sopro que nos destrói, mas a certeza de que ele sempre virá, repetindo-se como uma sentença sem possibilidade de apelação. Eu entendo. Há algo de insuportável nesse momento. O peso de um corpo que abandona a própria existência, a graveza que se torna inútil porque já não há mais ninguém para sustentá-la... Há os que precisam partir antes do gran finale, como se seus olhos recusassem a última imagem, que perverte o bom passado, como se pudessem negar o veredicto. Mas eu… eu fico. Como se a morte me tivesse escolhido para ser espectador de seu ofício, uma presença fixa no teatro do desaparecimento. Não sei se é destinação insana ou ironia celeste. Sei apenas que, ao contrário de você, infelizmente (talvez?), não sou arrancado do momento fatal— a senhora ceifadora me encontra, me cerca, me aceita como parte de seu cenário. E talvez realmente, no fundo, como disse, sejamos apenas dois lados de uma mesma moeda: um que se retira antes do impacto para evadir-se do incômodo espiritual, outro que testemunha o abismo engolir almas correndo riscos de corromper a beleza presente em seus dias.
(Cássio D. Versus & Jess de Camargo)